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Que é pois o tempo?


Somos feitos de tempo, lavrados instante a instante pelos seus instrumentos
 
Sabemos todos o que é o tempo, mas ele continua a ser uma coisa difícil de descrever. É como se nos faltassem subitamente palavras e o próprio tempo nos impusesse um outro tempo para nos aproximarmos do que ele é. Há uma espécie de lentidão necessária, um dobrar da língua ao qual Santo Agostinho, nas “Confissões”, é bem sensível. Escreve ele: “Que é pois o tempo? Se ninguém me pergunta eu sei, mas se desejo explicar a quem o pergunta não o sei.”
 
E, contudo, somos feitos de tempo, lavrados instante a instante pelos seus instrumentos: conhecemos idades, estações, tempos mensuráveis e incontáveis, formas visíveis e invisíveis de tempo. Por vezes, o tempo passa por nós com um passo tão subtil que nem damos por ele; sem dilemas ou cesuras, ele como que flutua. Mas outras, o mesmo tempo atormenta-nos, cerca-nos com a sua voracidade, insidia-nos, faz-nos escutar cada vez mais perto os seus martelos, e damos por nós mais sós, vulneráveis à sua obsidiante vertigem. O que é pois o tempo? Não sei se esta pergunta terá algum dia cabal resposta. O importante, creio, é a compreensão de que este tempo que nos atravessa, este tempo preciso, somos nós mesmos. Somos o instante que se prolonga. Somos o duro desejo de durar, e isso não é senão tempo, duração.
 
Mas há uma sabedoria do tempo a redescobrir. O tempo não é apenas tempo. O tempo é uma arte e pede de nós três coisas. A primeira é a necessidade de desfatalizarmos o tempo. A mordedura de serpente do tempo é fazer-nos crer que já não temos tempo e que tudo é irreversível, tudo passa apenas uma vez. O tempo visto assim é trágico e fechado, experiência de pura perda, sem real possibilidade de transformação e, ainda menos, de redenção. Tudo nos foge por entre os dedos sem que consigamos colher a oportunidade, sem que possamos saborear o sentido. No polo oposto, o poeta Rainer Maria Rilke ajuda-nos a pensar a ideia de aberto como projeto. E o aberto o que é? É a possibilidade de cada um viver em abertura fecunda ao real, resumida assim: “A nossa tarefa consiste em impregnar esta terra, provisória e perecível, tão profundamente em nosso espírito, com tanta paixão e paciência que a sua essência ressuscita em nós o invisível.” A segunda coisa que nos vem pedida é que entendamos as nossas sucessivas crises em relação ao tempo (inseguranças, conflitos, atritos, interrogações), mesmo se dolorosas, como formas de operacionalizar o tempo enquanto lugar não só de fins mas de recomeços. São Gregório de Nissa dizia isso: “O tempo é uma sucessão de começos.” E gosto do que escreveu Christiane Singer num livro precioso que se chama “Do Bom Uso das Crises”: “Ao longo da minha vida, eu fui aprendendo isto, que nos acontecem as crises para evitar que nos sobrevenham coisas piores. E como exprimir o que é pior? O pior é ter tido a infelicidade de atravessar a vida sem perguntas e sem naufrágios, o pior é ter ficado à superfície das coisas e nunca ter acedido a uma outra dimensão.” O terceiro desafio é reaprendermos o tempo como dom que nos ensina os múltiplos e inesgotáveis sentidos do dom. Aquilo que conta o pintor japonês Hokusai no seu testamento tão conhecido: “Desde os 5 anos de idade que tinha a mania de desenhar a forma das coisas; aos 50 anos produzi um número razoável de desenhos, mas no entanto tudo o que fiz até aos 70 anos não é realmente digno do nota; pelos 72 anos aprendi finalmente algo da verdadeira qualidade das aves, animais, insetos e peixes e da natureza vital das plantas e das árvores; assim, aos 80 anos deverei ter já feito algum progresso; aos 90 deverei ter penetrado ainda mais no mais fundo sentido das coisas; aos 100 anos de idade deverei ter-me tornado realmente maravilhoso; e aos 110, cada ponto, cada linha que eu desenhe deverá possuir seguramente uma vida própria.”

[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2253 | 31/12/15]

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