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ROTEIRO QUEIROSIANO – SINTRA – 12/04/2010, 11ºB, I

LEITURA DO CAPÍTULO VIII DE OS MAIAS DE EÇA DE QUEIRÓS, EM SINTRA


"O quê! o maestro não conhecia Sintra?... Então era necessário ficarem lá, fazer as peregrinações clássicas, subir à Pena, ir beber água à Fonte dos Amores, barquejar na várzea... (…)


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Carlos, no entanto, pensava no motivo que o trazia a Sintra. E realmente não sabia bem porque vinha: mas havia duas semanas que ele não avistava certa figura que tinha um passo de deusa pisando a terra, e que não encontrava o negro profundo de dois olhos que se tinham fixado nos seus: agora supunha que ela estava em Sintra, corria a Sintra. Não esperava nada, não desejava nada. Não sabia se a veria, talvez ela tivesse já partido. Mas vinha: e era já delicioso o pensar nela assim por aquela estrada fora, penetrar, com essa doçura no coração, sob as belas árvores de Sintra... (…)


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- A Lawrence onde é? Na serra? - perguntou ele com a ideia repentina de ficar ali um mês naquele paraíso.

- Nós não vamos para a Lawrence, disse Carlos saindo bruscamente do seu silêncio, e espertando os cavalos. Vamos para o Nunes, estamos lá muito melhor! (…)

E apenas o break parou à porta do Nunes, foi-lhe ainda dar um olhar, túmido e de longe - receando alguma palavra rude da sentinela.

Carlos no entanto, saltando logo da almofada, tomou à parte o criado do hotel, que descera a recolher as maletas.

- Você conhece o Sr. Dâmaso Salcede? Sabe se ele está em Sintra?

O criado conhecia muito bem o Sr. Dâmaso Salcede. Ainda na véspera pela manhã o vira entrar defronte, no bilhar, com um sujeito de barbas pretas... Devia estar na Lawrence, porque só com raparigas e em pândega é que o Sr. Dâmaso vinha para o Nunes.

- Então, depressa, dois quartos! exclamou Carlos, com uma alegria de criança, certo agora que ela estava em Sintra. E uma sala particular, só para nós, para almoçarmos!

(…)

O cocheiro levou o break, o criado sobraçou as maletas. Cruges, entusiasmado com Sintra, rompeu pela escada acima, a assobiar - conservando aos ombros o xaile-manta, de que se não queria separar, porque lho emprestara a mamã. E apenas chegou à porta da sala de jantar, estacou, ergueu os braços, teve um grito.

- Oh Eusebiozinho!

Carlos correu, olhou... Era ele, o viúvo, acabando de almoçar, com duas raparigas espanholas. (…)



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Eram duas horas quando os dois amigos saíram enfim do hotel, a fazer esse passeio a Seteais - que desde Lisboa tentava tanto o maestro. Na praça, por defronte das lojas vazias e silenciosas, cães vadios dormiam ao sol: através das grades da cadeia os presos pediam esmola. Crianças, enxovalhadas e em farrapos, garotavam pelos cantos; e as melhores casas tinham ainda as janelas fechadas, continuando o seu sono de Inverno, entre as árvores já verdes. De vez em quando aparecia um bocado da serra, com a sua muralha de ameias correndo sobre as penedias, ou via-se o Castelo da Pena, solitário, lá no alto. E por toda a parte o luminoso ar de Abril punha a doçura do seu veludo. (…)

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Defronte do hotel da Lawrence, Carlos retardou o passo, mostrou-o ao Cruges.

- Tem o ar mais simpático, disse o maestro. Mas valeu muito a pena ir para o Nunes, só para ver aquela cena... E então com quê o Sr. Carlos da Maia tem experiência de espanholas?

Carlos não respondeu, os seus olhos não se despegavam daquela fachada banal, onde só uma janela estava aberta com um par de botinas de duraque secando ao ar. À porta, dois rapazes ingleses, ambos de knicker-bokers, cachimbavam em silêncio; e defronte, sentados sobre um banco de pedra, dois burriqueiros ao lado dos burros, não lhes tiravam o olho de cima, sorrindo-lhes, cocando-os como uma presa.

Carlos ia seguir, mas pareceu-lhe ouvir, distante e melancólico, saindo do silêncio do hotel, um vago som de flauta; e parou ainda, remexendo as suas recordações, quase certo de Dâmaso lhe ter dito que a bordo Castro Gomes tocava flauta...

- Isto é sublime! exclamou do lado o Cruges, comovido.

Parara diante da grade de onde se domina o vale. E dali olhava, enlevadamente, a rica vastidão de arvoredo cerrado, a que só se vêem os cimos redondos, vestindo um declive da serra como o musgo veste um muro, e tendo àquela distância, no brilho da luz, a suavidade macia de um grande musgo escuro. E nesta espessura verde-negra havia uma frontaria de casa que o interessava, branquejando, afogada entre a folhagem, com um ar de nobre repouso, debaixo de sombras seculares... Um momento teve uma ideia de artista: desejou habitá-la com uma mulher, um piano e um cão da Terra-nova.

Mas o que o encantava era o ar. Abria os braços, respirava a tragos deliciosos:

- Que ar! Isto dá saúde, menino! Isto faz reviver!... (…)

Cruges (…) exclamou:

- Diabo! É necessário que não me esqueçam as queijadas!

Um som de rodas interrompeu-os, uma caleche descoberta desembocou a trote do lado de Seteais. Carlos ergueu-se logo, certo de que era ela, e que ele ia ver os seus belos olhos brilhar e fugir como duas estrelas. A caleche passou, levando um ancião de barbas de patriarca, e uma velha inglesa com o regaço cheio de flores e o véu azul flutuando ao ar. E logo atrás, quase no pó que as rodas tinham erguido, apareceu, caminhando pensativamente, de mãos atrás das costas, um homem alto, todo de preto, com um grande chapéu Panamá sobre os olhos. Foi Cruges que reconheceu os longos bigodes românticos, que gritou:

- Olha o Alencar! Oh! grande Alencar!... (…)


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- E onde estás tu, Alencar? perguntou logo Carlos.

- Pois onde queres tu que eu esteja, filho? Lá estou com a minha velha Lawrence. Coitada! está bem velha! mas para mim é sempre uma amiga, é quase uma irmã!... E vocês, que diabo? Para onde vão vocês com essas flores nas lapelas?

- A Seteais... Vou mostrar Seteais ao maestro.

Então também ele voltava a Seteais! Não tinha nada que fazer senão sorver bom ar, e cismar... Toda a manhã andara ali, vagamente, pendurando sonhos dos ramos das árvores. Mas agora já os não largava; era mesmo um dever ir ele próprio fazer ao maestro as honras de Seteais...

- Que aquilo é sítio muito meu, filhos! Não há ali árvore que me não conheça... Eu não vos quero começar já a impingir versos; mas enfim, vocês lembram-se de uma coisa que eu fiz a Seteais, e de que por aí se gostou...

Quantos luares eu lá vi!

Que doces manhãs de Abril!

E os ais que soltei ali

Não foram sete, mas mil!


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Pois então já vocês vêem, rapazes, que tenho razão para conhecer Seteais...

O poeta lançou ao ar um vago suspiro, e durante um instante caminharam todos três calados.

- Diz-me uma coisa, Alencar, perguntou Carlos baixo, parando, e tocando no braço do poeta. O Dâmaso está na Lawrence?

Não, que ele o tivesse visto. Verdade seja que na véspera, apenas chegara, fora-se deitar, fatigado; e nessa manhã almoçara só com dois rapazes ingleses. O único animal que avistara fora um lindo cãozinho de luxo, ladrando no corredor...

- E vocês onde estão?

- No Nunes.

(…)

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Mas, ao chegar a Seteais, Cruges teve uma desilusão diante daquele vasto terreiro coberto de erva, com o palacete ao fundo, enxovalhado, de vidraças partidas, e erguendo pomposamente sobre o arco, em pleno céu, o seu grande escudo de armas. Ficara-lhe a ideia, de pequeno, que Seteais era um montão pitoresco de rochedos, dominando a profundidade de um vale; e a isto misturava-se vagamente uma recordação de luar e de guitarras... Mas aquilo que ele ali via era um desapontamento.

- A vida é feita de desapontamentos, disse Carlos. Anda para diante! (…)

Iam ambos caminhando por uma das alamedas laterais, verde e fresca, de uma paz religiosa, como um claustro feito de folhagem. O terreiro estava deserto; a erva que o cobria, crescia ao abandono, toda estrelada de botões de ouro brilhando ao sol, e de malmequerzinhos brancos. Nenhuma folha se movia: através da ramaria ligeira o sol atirava molhos de raios de ouro. O azul parecia recuado a uma distância infinita, repassado de silêncio luminoso; e só se ouvia, às vezes, monótona e dormente, a voz de um cuco nos castanheiros.

Toda aquela vivenda, com a sua grade enferrujada sobre a estrada, os seus florões de pedra roídos da chuva, o pesado brasão rococó, as janelas cheias de teias de aranha, as telhas todas quebradas, parecia estar-se deixando morrer voluntariamente naquela verde solidão, - amuada com a vida, desde que dali tinham desaparecido as ultimas graças do tricorne e do espadim, e os derradeiros vestidos de anquinhas tinham roçado essas relvas... Agora Cruges ia descrevendo ao Alencar a figura do Eusebiozinho, com a chávena de café na mão, a ir pedir perdão à Concha; e a cada momento o poeta, com o seu grande chapéu panamá, se agachava a colher florinhas silvestres.

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Quando passaram o Arco, encontraram Carlos sentado num dos bancos de pedra, fumando pensativamente a sua cigarrete. O palacete deitava sobre aquele bocado de terraço a sombra dos seus muros tristes; do vale subia uma frescura e um grande ar; e algures, em baixo, sentia-se o prantear de um repuxo. Então o poeta, sentando-se ao lado do seu amigo, falou com nojo do Eusebiozinho. - Aí está uma torpeza que ele nunca cometera, trazer meretrizes a Sintra! Nem a Sintra, nem a parte nenhuma... Mas muito menos a Sintra! Sempre tivera, todo o mundo devia ter, a religião daquelas árvores e o amor daquelas sombras... (…)

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Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava a grande planície de lavoura que se estendia em baixo, rica e bem trabalhada, repartida em quadrados verde-claros e verde-escuros, que lhe faziam lembrar um pano feito de remendos assim que ele tinha na mesa do seu quarto. Tiras brancas de estradas serpeavam pelo meio: aqui e além, numa massa de arvoredo, branquejava um casal: e a cada passo, naquele solo onde as águas abundam, uma fila de pequenos olmos revelava algum fresco ribeiro, correndo e reluzindo entre as ervas. O mar ficava ao fundo, numa linha unida, esbatida na tenuidade difusa da bruma azulada: e por cima arredondava-se um grande azul lustroso como um belo esmalte, tendo apenas, lá no alto, um farrapozinho de névoa, que ficara ali esquecido, e que dormia enovelado e suspenso na luz... (…)


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Esteve um momento embebendo o olhar nas pedras brancas batidas do sol, atirou para lá um gesto triste, e murmurou:

- Foi ali.

E afastou-se, alquebrado sob o seu grande chapéu panamá, com o lenço branco na mão. Cruges, que aqueles romantismos impressionavam, ficou a olhar para os penedos como para um sítio histórico. Carlos sorria. E quando ambos deixaram esse recanto do terraço - o poeta, agachado junto do arco, estava apertando o atilho da ceroula.

Endireitou-se logo, já toda a emoção o deixara, mostrava os maus dentes num sorriso amigo, e exclamou, apontando para o arco:

- Agora, Cruges, filho, repara tu naquela tela sublime.

O maestro embasbacou. No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, à luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quase fantástica, como a ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarelos; ao fundo, o renque cerrado de antigas árvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente dessa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente num relevo nítido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra, toda cor de violeta escura, coroada pelo Castelo da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro... (…)


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Mas agora Cruges, impressionado, estava com desejo de subir à Pena. Alencar, por si, ia também com prazer. A Pena para ele era outro ninho de recordações. Ninho? Devia antes dizer cemitério... Carlos hesitava, parado junto da grade. Estaria ela na Pena? E olhava a estrada, olhava as árvores, como se pudesse adivinhar pelas pegadas no pó, ou pelo mover das folhas, que direcção tinham tomado os passos que ele seguia... Por fim teve uma ideia.

- Vamos indo primeiro à Lawrence. E depois se quisermos ir à Pena, arranjam-se lá os burros...

(…)

Defronte da Lawrence, os dois burriqueiros, de cigarro na boca, não tendo podido apoderar-se dos ingleses, preguiçavam ao sol.

- Vocês sabem, perguntou-lhes Carlos, se uma família, que está aqui no hotel, foi para a Pena?...

Um dos homens pareceu adivinhar, exclamou logo, desbarretando-se.

- Sim, senhor, foram para lá há bocado, e aqui está o burrinho também para V. Ex.ª, meu amo!

Mas o outro, mais honesto, negou. Não senhor, a gente que fora para a Pena estava no Nunes...

- A família que o senhor diz foi agora ali para baixo, para o palácio...

- Uma senhora alta?

- Sim senhor.

- Com um sujeito de barba preta?

- Sim senhor.

- E uma cadelinha?

- Sim senhor.

- Tu conheces o Sr. Dâmaso Salcede?

- Não senhor... É o que tira retratos?

- Não, não tira retratos... Tomai lá.

Deu-lhes uma placa de cinco tostões; e voltou ao encontro dos outros, declarando que realmente era tarde para subirem à Pena.

- Agora o que tu deves ver, Cruges, é o palácio. Isso é que tem originalidade e cachet! Não é verdade, Alencar?...

- Eu vos digo, filhos, começou o autor de Elvira, historicamente falando...

- E eu tenho de comprar as queijadas, murmurou Cruges.

- Justamente! exclamou Carlos. Tens ainda as queijadas; é necessário não perder tempo; a caminho! (…)


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[Carlos] correu à Lawrence por um caminho diferente, ávido de uma certeza: - e aí, o criado que lhe apareceu, disse-lhe que o Sr. Salcede e os srs. Castro Gomes tinham partido na véspera para Mafra...

- E de lá?...

O criado ouvira dizer ao Sr. Dâmaso que de lá voltavam a Lisboa.

- Bem, disse Carlos atirando o chapéu para cima da mesa, traga-me você um cálice de conhaque, e uma pouca de água fresca.

Sintra, de repente, pareceu-lhe intoleravelmente deserta e triste. Não teve ânimo de voltar ao palácio, nem quis sair mais dali; e arrancando as luvas, passeando em volta da mesa de jantar, onde murchavam os ramos da véspera, sentia um desejo desesperado de galopar para Lisboa, correr ao Hotel Central, invadir-lhe o quarto, vê-la, saciar os seus olhos nela!... Porque, o que o irritava agora era não poder encontrar, na pequenez de Lisboa, onde toda a gente se acotovela, aquela mulher que ele procurava ansiosamente! Duas semanas farejara o Aterro como um cão perdido: fizera peregrinações ridículas de teatro em teatro: numa manhã de domingo percorrera as missas! E não a tornara a ver. Agora sabia-a em Sintra, voava a Sintra, e não a via também. Ela cruzava-o uma tarde, bela como uma deusa transviada no Aterro, deixava-lhe cair na alma por acaso um dos seus olhares negros, e desaparecia, evaporava-se, como se tivesse realmente remontado ao céu, de ora em diante invisível e sobrenatural: e ele ali ficava, com aquele olhar no coração, perturbando todo o seu ser, orientando surdamente os seus pensamentos, desejos, curiosidades, toda a sua vida interior, para uma adorável desconhecida, de quem ele nada sabia senão que era alta e loira, e que tinha uma cadelinha escocesa... Assim acontece com as estrelas de acaso! Elas não são duma essência diferente, nem contém mais luz que as outras: mas, por isso mesmo que passam fugitivamente e se esvaem, parecem despedir um fulgor mais divino, e o deslumbramento que deixam nos olhos é mais perturbador e mais longo... Ele não a tornara a ver. Outros viam-na. O Taveira vira-a. No Grémio, ouvira um alferes de lanceiros falar dela, perguntar quem era, porque a encontrava todos os dias. O alferes encontrava-a todos os dias. Ele não a via, e não sossegava...


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O criado trouxe o conhaque. Então Carlos, preparando vagarosamente o seu refresco, conversou com ele, falou um momento dos dois rapazes ingleses, depois da espanhola obesa... Enfim, dominando uma timidez, quase corando, fez, através de grandes silêncios, perguntas sobre os Castro Gomes. E cada resposta lhe parecia uma aquisição preciosa. A senhora era muito madrugadora, dizia o criado: às sete horas tinha tomado banho, estava vestida, e saia só. O Sr. Castro Gomes, que dormia num quarto separado, nunca se mexia antes do meio-dia; e, à noite, ficava uma eternidade à mesa, fumando cigarretes e molhando os beiços em copinhos de conhaque e água. Ele e o Sr. Dâmaso jogavam o dominó. A senhora tinha montões de flores no quarto; e tencionavam ficar até domingo, mas fora ela que apressara a partida...

- Ah, disse Carlos depois de um silêncio, foi a senhora que apressou a partida?...

- Sim, senhor, com cuidado na menina que tinha ficado em Lisboa... (…)


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E aquela natureza de Sintra, ao escurecer, dizia ele, começava a entristecê-lo.

Então concordaram em jantar ali, na Lawrence, para evitar o espectáculo torpe do Palma e das damas, mandar vir à porta o break, e partir depois ao nascer do luar. Alencar, aproveitando a carruagem, recolhia também a Lisboa. (…)

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Na Lawrence o jantar prolongou-se até às oito horas, com luzes; - e o Alencar falou sempre. Tinha esquecido nesse dia as desilusões da vida, todos os rancores literários, estava numa veia excelente; e foram histórias dos velhos tempos de Sintra, recordações da sua famosa ida a Paris, coisas picantes de mulheres, bocados da crónica íntima da Regeneração... Tudo isto com estridências de voz, e filhos isto! e rapazes aquilo! e gestos que faziam oscilar as chamas das velas, e grandes copos de Colares emborcados de um trago. Do outro lado da mesa, os dois ingleses, correctos nos seus fraques negros, de cravos brancos na botoeira, pasmavam, com um ar embaraçado a que se misturava desdém, para esta desordenada exuberância de meridional.

A aparição do bacalhau foi um triunfo: - e a satisfação do poeta tão grande, que desejou mesmo, caramba, rapazes, que ali estivesse o Ega!

- Sempre queria que ele provasse este bacalhau! Já que me não aprecia os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto é um bacalhau de artista em toda a parte!... Noutro dia fi-lo lá em casa dos meus Cohens; e a Rachel, coitadinha, veio para mim e abraçou-me... Isto, filhos, a poesia e a cozinha são irmãs! Vejam vocês Alexandre Dumas... Dirão vocês que o pai Dumas não é um poeta... E então d'Artagnan? D'Artagnan é um poema... É a faísca, é a fantasia, é a inspiração, é o sonho, é o arroubo! Então, poço, já vêem vocês, que é poeta!... Pois vocês hão-de vir um dia destes jantar comigo, e há-de vir o Ega, e hei-de-vos arranjar umas perdizes à espanhola, que vos hão-de nascer castanholas nos dedos!... Eu, palavra, gosto do Ega! Lá essas coisas de realismo e romantismo, histórias... Um lírio é tão natural como um percevejo... Uns preferem fedor de sarjeta; perfeitamente, destape-se o cano publico... Eu prefiro pós de marechala num seio branco; a mim o seio, e, lá vai à vossa. O que se quer, é coração. E o Ega tem-no. E tem faísca, tem rasgo, tem estilo... Pois, assim é que eles se querem, e, lá vai à saúde do Ega!


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Pousou o copo, passou a mão pelos bigodes, e rosnou mais baixo:

- E, se aqueles ingleses continuam a embasbacar para mim, vai-lhes um copo na cara, e é aqui um vendaval, que há-de a Grã-Bretanha ficar sabendo o que é um poeta português!...

Mas não houve vendaval, a Grã-Bretanha ficou sem saber o que é um poeta português, e o jantar terminou num café tranquilo. Eram nove horas, fazia luar, quando Carlos subiu para a almofada do break.

Alencar, embuçado num capote, um verdadeiro capote de padre de aldeia, levava na mão um ramo de rosas: e agora, guardara o seu panamá na maleta, trazia um boné de lontra. O maestro, pesado do jantar, com um começo de spleen, encolheu-se a um canto do break, mudo, enterrado na gola do paletó, com a manta da mamã sobre os joelhos. Partiram. Sintra ficava dormindo ao luar.

Algum tempo o break rodou em silêncio, na beleza da noite. A espaços, a estrada aparecia banhada duma claridade quente que faiscava. Fachadas de casas, caladas e pálidas, surgiam, de entre as árvores com um ar de melancolia romântica. Murmúrios de águas perdiam-se na sombra; e, junto dos muros enramados, o ar estava cheio de aroma. Alencar acendera o cachimbo, e olhava a lua.

Mas, quando passaram as casas de S. Pedro, e entraram na estrada, silenciosa e triste, Cruges mexeu-se, tossiu, olhou também para a lua, e murmurou de entre os seus agasalhos:

- Ó Alencar, recita para aí alguma coisa...

O poeta condescendeu logo - apesar de um dos criados ir ali ao lado deles, dentro do break. Mas, que havia ele de recitar, sob o encanto da noite clara? Todo o verso parece frouxo, escutado diante da lua! Enfim, ia dizer-lhe uma história bem verdadeira e bem triste... Veio sentar-se ao pé do Cruges, dentro do seu grande capotão, esvaziou os restos do cachimbo, e, depois de acariciar algum tempo os bigodes, começou, num tom familiar e simples:

Era o jardim duma vivenda antiga,

Sem arrebiques de arte ou flores de luxo;

Ruas singelas de alfazema e buxo,

Cravos, roseiras...

- Com mil raios! exclamou de repente o Cruges, saltando de dentro da manta, com um berro que emudeceu o poeta, fez voltar Carlos na almofada, assustou o trintanário.

O break parara, todos o olhavam suspensos; e, no vasto silêncio da charneca, sob a paz do luar, Cruges, sucumbido, exclamou:

- Esqueceram-me as queijadas!"

Eça de Queirós, OS MAIAS, capítulo VIII

Comentários

  1. Grande roteiro! A companhia do Carlos da Maia, de Cruges e de Alencar, ajudou bastante...

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