Avançar para o conteúdo principal

LIXO

Chamem-lhe lixo. Eu chamo-lhe vida, chamo-lhe inspiração, chamo-lhe sentimentos, chamo-lhe experiências, chamo-lhe o meu tudo. Pois claro. Sou um caixote do lixo. Uau, surpreendidos? Era preciso ter um nível de ignorância relativamente elevado para não o concluir. Podem passar por mim sem notar, posso ser um mero adereço numa sala de aula, mas existo. Eu E-X-I-S-T-O. Se me criaram é porque precisam de mim, se me criaram é porque faço falta. Por isso não me desprezem e metam o lixo dentro de mim.

Odeio ecopontos, odeio coisas de grande volume e odeio que me usem como suporte para segurar a porta por causa das correntes de ar. Odeio professores que tropeçam em mim, odeio auxiliares que levam o meu lixo, odeio alunos que tentam acertar com o lixo dentro de mim e que são incrivelmente certeiros (mais uma vez é preciso ter uma grande ignorância para não dar conta da tamanha IRONIA que expresso). Odeio sacos de plástico grandes demais, odeio sacos de plástico pequenos demais. Odeio chão que não é envernizado, odeio pastilhas elásticas, odeio que digam que cheiro mal, odeio pessoas de nariz empinado.

Adoro lixo.

Quis separar aquelas duas palavras luminosas num parágrafo. Adoro lixo porque é a minha vida. Tudo o que sei, tudo o que experienciei, tudo com que sonhei, tudo o que senti, tudo o que vivi se baseia no lixo. Quem define o lixo como: “s.m. o que é varrido para limpar uma casa, etc.; imundice; sujidade; (figurado) coisas inúteis.” É um autêntico Dicionário Básico da Língua Portuguesa da Porto Editora que se resume a páginas de definições estúpidas, não vivenciadas, e que no fim da sua vida se vai tornar num “s.m. o que é varrido para limpar uma casa, etc.; imundice; sujidade; (figurado) coisas inúteis.”. E que durante a sua vida não passa de um enorme “adj. e s. 2 gén. que ou pessoa que ignora; SEM INSTRUÇÃO.”. Resumidamente, ignorante. O lixo é o resultado do que vocês, humanos egocêntricos e ignorantes, vivem. O lixo é o que sobra da vossa dignidade. O lixo completa-me e constitui-me, tal como os vossos órgãos, as vossas experiências, as vossas atitudes, a vossa personalidade, a vossa ignorância vos completa e constitui. Gostavam que os caixotes do lixo corressem atrás de vocês, feitos psicopatas, a roubar-vos os órgãos, a viver as experiências por vocês e a roubar-vos a personalidade? (talvez valesse a pena roubar-vos um bocado da ignorância…) Não gostavam pois não? Então não façam o mesmo, está bem?! Mas não percebo uma coisa. Se para vocês, ignorantes, e para o Dicionário Básico da Língua Portuguesa da Porto Editora, o lixo não passa de um desperdício, então porque é que insistem em mantê-lo no vosso mundo e não o deitam para dentro de um caixote do lixo sedento para ele deixar de vos incomodar?

Sabem o que acho que são? Vão ver ao dicionário.

Maria Pathé – Nº 20 – 10º B


Comentários

  1. Um texto inesperado mas, sem dúvida, muito oportuno. Na era em que quase tudo se resume a bem material, saber esmiuçar pequenas virtudes subestimadas como o "lixo" (!) é realmente de um preciosismo louvável! Parabéns!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

COMO SE FAZ UM COMENTÁRIO A UM TEXTO

1- LER atentamente o texto: as vezes que forem necessárias até o compreender. Pelo menos duas vezes, mesmo que seja de fácil compreensão; 2- À medida que se lê o texto, devem APONTAR-SE os conceitos e palavras/vocábulos dos quais não conhecemos o significado; 3 - Depois de lido o texto (as vezes que forem necessárias), CONSULTAR UM DICIONÁRIO E/OU UMA ENCICLOPÉDIA , no sentido de encontrar as respostas a todas as palavras e expressões que dificultavam a compreensão daquele; 4 - IDENTIFICAR se é um texto autónomo e independente ou se é um excerto de um texto (um texto completo ou parte de... ); 5 - IDENTIFICAR o género literário a que o texto corresponde (se é prosa, se é poesia, que tipo de poesia, etc... ); 6 - INDICAR o tema do texto, ou seja, a ideia fundamental do mesmo; 7 - Para a compreensão de um texto é, muitas vezes, necessário DIVIDI-LO em partes; 8- Se se tratar de um texto de opinião e for exigido um COMENTÁRIO CRÍTICO do texto, é necessário contra-argumentar e

ARREDORES

ARREDORES «Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros» Álvaro de Campos No tempo em que havia quintas e hortas em Lisboa, e se ia para lá aos domingos, eu ficava em casa. E em vez de ir para as quintas e para as hortas, em vez de apanhar couves e de ordenhar ovelhas, lia poemas que falavam das quintas e das hortas de Lisboa, como se isso substituísse o ar do campo e o cheiro dos estábulos. É por isso que hoje, quando me lembro dos arredores de Lisboa onde havia quintas e hortas, o que lembro são as horas de leitura de poemas sobre esses arredores, e os passeios que eles me faziam dar aos domingos, substituindo os lugares reais com mais exactidão do que se eu tivesse ido a esses lugares. Visitei, assim, quintas e hortas pela mão do Cesário Verde e do Álvaro de Campos, e soube por eles tudo o que precisava de saber sobre os arredores de Lisboa, que hoje já não existem porque Lisboa entrou por eles e transformou as quintas em prédios e as ovelhas em automóvei

ROTEIRO QUEIROSIANO – SINTRA – 12/04/2010, 11ºB, I

LEITURA DO CAPÍTULO VIII DE OS MAIAS DE EÇA DE QUEIRÓS, EM SINTRA "O quê! o maestro não conhecia Sintra?... Então era necessário ficarem lá, fazer as peregrinações clássicas, subir à Pena, ir beber água à Fonte dos Amores, barquejar na várzea... (…) Carlos, no entanto, pensava no motivo que o trazia a Sintra. E realmente não sabia bem porque vinha: mas havia duas semanas que ele não avistava certa figura que tinha um passo de deusa pisando a terra, e que não encontrava o negro profundo de dois olhos que se tinham fixado nos seus: agora supunha que ela estava em Sintra, corria a Sintra. Não esperava nada, não desejava nada. Não sabia se a veria, talvez ela tivesse já partido. Mas vinha: e era já delicioso o pensar nela assim por aquela estrada fora, penetrar, com essa doçura no coração, sob as belas árvores de Sintra... (…) - A Lawrence onde é? Na serra? - perguntou ele com a ideia repentina de ficar ali um mês naquele paraíso. - Nós não vamos para a