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À REDESCOBERTA DO ESTADO DE DIREITO (Texto do ionline.pt)

A tradição medieval de autonomia da lei parece constituir um factor poderoso para explicar o ulterior sucesso da democracia moderna na Europa

Neste artigo gostaria de propor um quadro de análise da questão do estado de direito [rule of law] que possa servir de base a um programa de investigação nos próximos 20 anos da 'Journal of Democracy'." Com estas palavras, Francis Fukuyama inicia o seu artigo na edição comemorativa dos primeiros 20 anos da "Journal of Democracy" (Janeiro de 2010, volume 21, n.o 1). O artigo intitula-se "Transitions to the rule of law" e apresenta realmente novas ideias desafiadoras para pensar a democracia e as suas origens.

DEMOCRACIA LIBERAL O ponto de partida de Fukuyama consiste em recordar a dupla dimensão da democracia constitucional (ou liberal), a causa que levou à fundação da "Journal of Democracy", em Janeiro de 1990. Essa dupla dimensão inclui, por um lado, instituições democráticas que garantem que os governos prestam contas à escolha popular, e, por outro, instituições que garantem um estado de direito [rule of law].

A verdade, observa em seguida Fukuyama, é que os últimos 20 anos assistiram ao aparecimento de uma abundante literatura sobre as transições para a democracia - sobretudo na sequência do famoso livro de Samuel Huntington, "A Terceira Vaga de Democratização no Mundo" (1990). No entanto, curiosamente, pouco ou nada foi escrito no âmbito da ciência política acerca das transições para o estado de direito.

ESTADO DE DIREITO Esta assimetria entre a literatura dedicada à transição democrática e a dedicada à transição para o estado de direito é particularmente intrigante porque toda a experiência histórica aponta para a precedência do estado de direito sobre a democracia. Não só o estado de direito precedeu a emergência da democracia, como também é observável que as democracias mais antigas e estáveis foram as que resultaram do gradual alargamento das garantias do estado de direito a todos os cidadãos.

Fukuyama define estado de direito, ou rule of law, como um conjunto de constrangimentos legais que limitam o poder dos governantes - quaisquer que eles sejam - e os compelem a governar de acordo com regras ou leis preexistentes. Por outras palavras, a ideia de estado de direito exprime a ideia de governo limitado pela lei, mesmo que esse governo tenha origem na vontade popular maioritária.

DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO O conceito de estado de direito é particularmente caro aos economistas. Uma vasta literatura económica tem sublinhado a indispensabilidade de limites legais à vontade política para o desenvolvimento económico.

Sem protecção legal dos direitos de propriedade e da liberdade dos contratos, os indivíduos não se sentirão seguros para poupar, investir e empreender. Sentir-se-ão à mercê do capricho arbitrário dos poderosos e optarão por outros caminhos para melhorar a sua condição: ou tentarão obter favores da corte dos poderosos, ou recorrerão a actividades paralelas.

RELIGIÃO Curiosamente, a origem da ideia de estado de direito é fundamentalmente religiosa. Decorre da ideia de que existe uma lei mais alta, dada por Deus, à qual os governantes devem submeter-se.

Fukuyama recorda que na tradição judaico-cristã, e até certo ponto também no islão, nenhum governante se considerava inteira ou absolutamente soberano. Acima dele encontrava-se Deus e a lei natural, que impunha ao governante a obediência a leis gerais de justiça.

EXCEPÇÃO CHINESA Um dos pontos curiosos sugeridos por Fukuyama é que a mais significativa excepção a este entendimento ocorreu na China e nas culturas da Ásia de Leste influenciadas pela cultura chinesa. Isto ter-se-á devido, segundo Fukuyama, ao facto de a China nunca ter desenvolvido uma religião transcendente, para além do culto dos antepassados.

"O culto dos antepassados não é uma boa fonte da lei - argumenta Fukuyama --, dado que ninguém é obrigado a prestar culto aos antepassados dos outros e por isso não se geram deveres comuns susceptíveis de aplicação a uma sociedade alargada."

IGREJA CATÓLICA Foi na Europa cristã medieval que o conceito de lei e de governo das leis emergiu de forma mais sofisticada, mesmo antes da emergência do estado moderno, recorda Fukuyama. Isso ficou a dever -se fundamentalmente ao papel da Igreja Católica e à sua resistência a ser submetida à vontade do imperador. Esta tensão teve um ponto decisivo em 1075, quando o Papa Gregório VII recusou ao imperador o poder de nomear os bispos da Igreja. Gregório VII restaurou a autonomia da Igreja, e com ela da lei canónica.

As universidades católicas medievais, lideradas pela Universidade de Bolonha, tornaram-se sofisticados centros de estudo e desenvolvimento de um corpo de leis, independentes da vontade do poder político. Uma importante expressão política desta autonomia da lei relativamente ao poder temporal foi dada pela Magna Carta inglesa de 1215: aí são estabelecidas as liberdades e prerrogativas dos súbditos, que constituem limites à vontade do poder político.

EUROPA-AMÉRICA Trata-se de um factor poderoso para explicar o ulterior sucesso da democracia moderna na Europa: tendo emergido numa tradição de forte constrangimento do poder político pela lei, uma tradição medieval, a democracia na Europa nasceu como democracia constitucional, isto é, como democracia limitada pela lei.

As ideias de separação e equilíbrio de poderes, bem como de direitos e garantias constitucionais, emergem da tradição legal medieval e são particularmente visíveis na chamada "gloriosa revolução inglesa" de 1688. A revolução americana de 1776 na verdade começa com a acusação ao rei e ao parlamento de Londres de estarem a infringir as leis ancestrais inglesas. A Constituição americana de 1787-8 é particularmente enfática na limitação e separação de poderes.

MODERNIDADE RELUTANTE Assim, parece fazer sentido dizer que o sucesso destas duas primeiras revoluções da época moderna fica a dever-se em grande parte ao facto de elas terem sido revoluções modernas relutantes - que não romperam com a tradição medieval do governo das leis.

FRANÇA E RÚSSIA Por contraste, a Revolução Francesa procurou romper com a tradição medieval do governo limitado pela lei. Inspirada nas teorias de Rousseau sobre a soberania popular ilimitada, tentou subverter os limites legais à vontade política. Está na origem das versões totalitárias da democracia que inspiraram a revolução soviética e de grande parte das experiências radicais republicanas na América Latina.

João Carlos Espada, publicado em 27 de Fevereiro de 2010, ionline.pt


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